segunda-feira, 6 de maio de 2013

Ferva

Tudo que senti ser meu
mas sempre soube que nunca me pertenceu
Me encontrei perdido na sua loucura
Seu jeito de ser interessantemente autêntica,
estranhamente bela, psicologicamente impura
E quente, em vários sentidos.

Seu calor somou-se com o meu.
Borbulhamos, como a água do narguile
numa daquelas noites místicas.
No extremo do excesso, nos extasiamos.
Gosto dessa sua estética, moça, mas cuide-se.
Pois por fora é crocante, mas sua mente é melosa,
e tudo é muito frágil...

Fique apenas com o ritmo frenético que já lhe é inerente,
continue na sua efervecência original.
Ferva, fervamos juntos, até o ápice
E depois, evaporemos...

Voltemos a ser moléculas soltas, separadas,
Que eventualmente se condensam novamente
se juntando numa lágrima,
ou num suor de sexo.

E que assim seja, pois a eternidade, neste mundo líquido,
não serve mesmo pra nada.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Uma história estranha

   E de repente ele despertou em outra experiência. Tudo era muito claro, uma luminosidade tão ofuscante que ele não sabia dizer porque seus olhos não estavam cerrados. Via tudo nitidamente mas com uma definição desconhecida. Sem contexto e sem origem, uma figura veio lhe falar:
 - Está quase lá, agora não vai demorar muito.
 - Demorar pra que? ele retrucou naturalmente
 - Pra você morrer.
   Por um breve momento sua cabeça foi repetindo várias vezes esse curto diálogo para interpretar o que aconteceu. No próximo instante sua memória contextualizou a cena: até onde sua consciência se lembrava, ele estava deitado numa cama de hospital com um negócio preso no nariz. Agora provavelmente estaria no céu, um lugar branco como nos clichês das histórias.
   - Então você é a morte? replicou como se a figura tivesse acompanhado todo o seu raciocínio
   - Não, não. Como acabei de falar, você ainda não morreu. E por que me confunde com tal entidade? Ela não tem essa aparência na sua imaginação.
   Era verdade. Ele começava a ter consciência da forma da figura. Tinha voz grave e a aparência de um velho forte e elegante, o oposto da representação encapuzada e obscura da morte, e estava num lugar muito alto de modo que só a sua barba volumosa e cacheada era visível. 
   - Então você é Deus e esse é o céu?
   - Não não, bobagem. Essa coisa de céu não existe. Você está para morrer, mas não vai para o céu.
   - Como assim o céu não existe? Vou morrer e vou para o inferno?
   - Também não, o inferno também não existe. Daqui você vai para um lugar que não terá mais essa percepção. É uma dimensão que está além da sua capacidade imaginativa. O máximo que você pode imaginar em vida era que depois da morte vem o céu ou o inferno, mas te asseguro que a coisa é bem mais complexa.
   - Mas se esse não é o céu, o que mais seria esse lugar branco e um velho barbudo iluminado como você?
   - Eu sou um intermediário. Sou a última ligação que resta entra a sua vida e a sua morte. Mas não me olhe como um Deus, um anjo, ou qualquer coisa do tipo. Se sou pálido como você diz é porque o que resta da sua mentalidade cristã assim escolheu. Para alguns eu seria vermelho e estaria rodeado de fogo, para outros eu seria algum tipo de mago asiático e flutuaria entre montanhas de gelo. Até já fui um uma nuvem com rosto.
   - Então tudo isso não passa de imaginação minha?
   - Sim. Essa foi a estética que você imaginou para a dimensão além do mundo material. Portanto, enquanto você ainda estiver com o fio de vida que lhe resta agora, as coisas terão esse visual.
   Ele estremeceu. Um medo tomou conta de toda sua razão. A ideia de não ir para o céu nem para o inferno, nem para qualquer outro lugar que ele cogitava, era assustadora. Para onde iria então? "Uma dimensão que está além da sua capacidade imaginativa". Isso lhe incomodava. Se estava além da sua imaginação, poderia ser qualquer coisa! Talvez até mesmo ele apagasse pra sempre como se nunca tivesse existido!
   Ele olhou em volta, as coisas agora pareciam mais esclarecidas. Via-se colunas renascentistas por todo o lado. Elas tendiam para o infinito tanto na altura como na quantidade, e tudo tinha uma harmonia simétrica, um ritmo clássico, tão clássico como a estética daquele velho. "Se sou pálido como você diz é porque o que resta da sua mentalidade cristã assim escolheu". Ficou surpreso ao saber como o imaginário clássico ainda estava presente no seu inconsciente. Justo ele, um estudioso da arte contemporânea, um intelectual preocupado com o pós-modernismo, um ateu não praticante.  Por que imediatamente ele acreditou estar no céu? Por que sua mente ainda estava ligada nesses clichês tão cafonas?
   - O que me resta agora?
   - Vim te fazer alguns encaminhamentos, responder algumas perguntas talvez. Seria injusto e triste demais você despertar depois da morte sem nenhuma explicação sobre a existência, sobre os mistérios da sua vida.
   - Todos ganham esse tipo de explicação?
   - Todos aqueles que pelo menos se questionaram sobre o motivo da existência. Pois só esses conseguiram criar uma consciência capaz de inventar um personagem como eu, que lhes dá todas essas respostas quando chegar a hora certa.
   As palavras do velho sábio ecoavam na sua cabeça até construírem algum sentido. Embora fosse uma conversa que se valia dos sentidos humanos como a visão e a audição, havia algo místico naquele diálogo que o ajudava a entender a dialética. Uma ideia trazida dessa mística surgiu para confundir sua cabeça ainda mais. Se foi a sua própria consciência que criou esse ambiente e esse personagem, todas as supostas verdades que o sábio diria seriam nada mais do que tudo aquilo que ele já sabia, como uma reordenação de ideias já estudadas por ele, e portanto nada teriam a acrescentar sobre a verdadeira verdade das coisas! Sua consciência não poderia construir nada vindo de fora.
   - Engano seu - disse o velho - Eu sou criado pela sua consciência, mas também sou criado pela consciência de muitos outros humanos como acabei de dizer. O que os torna humanos, o que os fazem pertencer à humanidade, é a junção de todas as consciências, de todas as experiências vividas, de toda uma rede de subjetividades que permitem que vocês se relacionem através de um sistema de linguagem durante a vida. Agora, antes da morte, antes da passagem para a outra dimensão que eu aqui te apresento, todos os questionamentos e respostas alcançados por todos os seres humanos antes de você se complementam e formam um único discurso. Toda a raça humana está conectada por uma linha de pensamento, como se todos tivessem uma consciência transcendental em comum. Portanto, você não está conversando apenas com a sua consciência e com as respostas que você encontrou em vida, entenda que você está de frente com todos os resultados de todos os pensadores contemporâneos ou antecessores a você.
   E as palavras novamente iam se refletindo como luz pelo seu corpo. Era como se todas as grandes ideias, todos os grandes conhecimentos sobre a vida adquirido por qualquer ser humano fossem estudados e confrontados. Isso era bem melhor que a academia! Quantas ideias ele mesmo teve e deixou de escrever? Quantas ideias não foram expostas, e foram guardadas na consciência do ser, que agora poderiam surgir e acrescentar em uma nova linha de pensamento! As experiências de todo o ser humano poderiam agora ser compreendidas e dar algum significado à existência! O quão grandioso era esse momento!
   - Se apresse por favor, faça suas perguntas que o tempo que temos aqui é o mesmo tempo que conta o seu marco passo. Muito já está encaminhado e meu dever está quase pronto, mas ainda dá tempo de você fazer algumas perguntas antes de partir.
   - Como assim seu dever está quase pronto? Diante de todas as respostas eu posso fazer muitas perguntas! Você ainda tem muito a me dizer! Dê-me um pouco mais de tempo!
   - Criatura ingênua e ignorante! Teima a me tomar como um Deus que tem o poder de estender as horas! Sou apenas a junção de todos os pensamentos humanos da história, trate me como um livro de filosofia personificado, assim como a estética que a sua imaginação me concedeu! Aproveite o tempo que tiver e me faça perguntas que eu te darei as respostas.
   Uma euforia tomava conta dele. Era cômico que mesmo não estando exatamente em vida, ele ainda estava correndo contra o tempo. Teria que se apressar, teria que sanar suas mais importantes dúvidas agora. Quem sabe o que ele se transformaria depois de sua morte? Talvez fosse uma coisa tão complexa que a sua mente fosse desmanchada numa dimensão tão diferente que esses questionamentos perderiam o sentido, era como se ele próprio sumisse de vez. Talvez era isso mesmo que lhe aguardava, a inexistência! Sem perder mais tempo decidiu fazer dessa dúvida a sua primeira pergunta desesperada:
   - No que eu me transformarei quando morrer?
   - Não sei. Você usa o seu tempo sem muita inteligência. Eu te expliquei que eu sou como um livro de respostas feito pela consciência, em vida, de todos aqueles que vivem ou já viveram. Como pode os que nunca morreram saber o que será depois da morte? Pense melhor antes de fazer sua pergunta, mas pense rápido.
   E de novo ele se surpreendia com a sua burrice. Como poderia, um sujeito tão intelectual em vida, agora que se encontrava na frente de todas as respostas, fazer perguntas tão estúpidas? De que lhe serviu toda a filosofia que estudou? Voltou a pensar e fez a pergunta mais óbvia, cansado de errar:
   - O que é a vida?
   - Não sei.
   Como podia ele não saber? Depois de mais de 200 mil anos que o ser humano existe, depois de séculos de indagações filosóficas, nenhum indivíduo conseguiu definir o que é a vida?
   - Exatamente. Mesmo depois de várias vivências diferentes, de várias culturas, crenças, etnias diferentes, com toda a evolução do conhecimento, pensadores geniais, mesmo tendo tudo que eles pensaram aqui comigo, eu não sei te dar essa resposta.
   Agora era a vez da tristeza tomar conta do seu ser. Que decepção. Ele só tinha mais algumas horas de vida e nunca saberia dizer o que é a vida.
   - Na realidade você tem mais alguns minutos de vida. Não se esqueça de que ser a junção de todas as consciências humanas inclui também a sua. Portanto sei também o que o seu cérebro está passando, sei que o seu corpo está quase te abandonando por completo nesse momento. Ande rápido com suas perguntas.
   Ele deveria se reerguer, abandonar essa tristeza, esquecer todo esse mistério sem resposta e partir para uma pergunta que a humanidade tenha chegado à alguma conclusão, e que essa lhe satisfizesse de alguma forma.
   -Bem, então, o que é o ser humano?
   - Agora consigo te responder. O ser humano é um corpo, um organismo, composto pela inteligência e pela sensibilidade a ele inerentes. Ele é guiado pela consciência perceptiva que interpreta os objetos de acordo com sua forma, que depois de percebida, passa a ser um fenômeno subjetivo agregando parte de sua consciência. (minha resposta, o que é o ser humano pra mim)
Aquela ideia não lhe era estranha...
   - Merleau-Ponty?
   - Não só ele, mas os pensamentos dele junto com outros espalhadas por toda a humanidade contribuíram nessa definição.
   Foi curioso, e prazeroso também, descobrir que um dos autores que ele leu foi um dos que mais contribuíram para um verdade sobre o ser. Supondo que o sábio lhe falava em nome de todas as consciências humanas, então era aceito supor uma verdade suprema sobre a humanidade. Sobre a vida ainda não,  ainda era muito complexo, mas sobre a humanidade ele poderia fazer perguntas. Mesmo tendo gostado da resposta, ele não estava satisfeito, ele precisava de um argumento novo, algo que nunca havia lido, algo completamente diferente, algo que lhe desse vontade de morrer e descobrir uma nova atmosfera.
   - Uma das milhões de consciências que guardo comigo está parando de trabalhar, está fechando todos os seus pensamentos, e alguns sem conclusões. Você tem tempo para mais uma pergunta.
   Aquele medo voltou a lhe afligir. Qual seria a pergunta que lhe daria a satisfação buscada? A resposta que o faria morrer sem ressentimentos, sem perturbações, que o o deixaria feliz para partir para qualquer lugar que fosse. Uma saudade da vida que ele levou foi se apossando dele, uma saudade das experiências que ele próprio tinha vivido, uma saudade das pessoas que ele amava. Essa saudade foi se transformando aos poucos em nostalgia, e essa nostalgia o fez se recolher em sua individualidade, inferior a toda aquela grandiosidade das questões acerca do homem e da vida. Ele percebeu que a pergunta final, a resposta que lhe daria a felicidade necessária, era sobre ele mesmo.
   - O que seria aproveitar ao máximo essa humanidade?
   - Aproveitar ao máximo a humanidade que é dada para alguém, seria viver a totalidade desses fenômenos subjetivos, seria sentir todos os sentimentos, todas as sensações, toda a sensibilidade que o organismo humano pode alcançar. Descobrir extremamente a percepção humana.
   Ainda lhe restava uma dúvida. Para estar em paz consigo mesmo, para tranquilizar sua própria consciência, ele tinha que fazer uma última pergunta, por mais infantil que ela fosse.
   - Eu consegui viver completamente a minha humanidade?
   O sábio sorriu.
   - Você não viveu a totalidade de sua humanidade, mas poucos conseguiram até agora. Mas em alguns aspectos você conseguiu viver o máximo. No que se diz respeito ao intelecto você aproveitou bastante, procurou conhecer todos os pontos de vista possíveis, percebeu que existem várias interpretações para uma única experiência. Contanto você não atingiu o ápice de sua sensibilidade, pois durante o seu percurso deixou de criar, de fazer arte, que é a suprema produção humana. Mas tendo em vista as suas percepções e as suas vivências, posso lhe afirmar que a sua vida foi muito bem aproveitada.
   Ele se perguntava, e tentava entender qual seria os aspectos que ele conseguiu aproveitar por inteiro.
   - No amor está a sua satisfação. No amor você atingiu o ápice. A sua relação amorosa mais duradoura foi inteiramente vivida, não porque foi eterna, pois não foi, mas porque foi infinita enquanto durou. Você e a pessoa que você amou souberam aproveitar o amor ao extremo, souberam viver todos os momentos dele, sentir tudo o que ele podia lhes proporcionar. Mais do que isso, o que realmente o fez viver o ápice, foi o fato de que vocês souberam a hora de terminar, como se tudo fosse finitamente eterno, como se o tempo não importasse, valorizando a percepção e a experiência humana. Vocês deram à humanidade o exemplo de que um casal pode viver o máximo de sua existência através do amor, e quando esse amor não for mais o suficiente, vocês conseguiram provar que a relação entre o seres é muito mais do que isso, mantendo a amizade até o fim de suas vidas. Mais do que o amor, você viveu o ápice das relações pessoais, da conexão entre dois seres.
   E agora as palavras do sábio refletiram como luz mais uma vez pelo seu corpo, pelo seu organismo, mas desta vez com muito mais vigor, com muito mais luminosidade. Agora ele estava satisfeito, viveu toda a sua vida atingindo o limite mais alto possível nas relações pessoais do ser humano. Sua consciência agora seria guardada no meio de tantas outras, e serviria para agregar todo esse emaranhado complexo de pensamentos que o sábio trazia consigo. Isso lhe trazia a satisfação que tanto queria e o deixava leve para ser levado para onde quer que fosse pela morte.
   - Finalmente seu tempo acabou. Agora será levado para outro mundo. Um mundo que eu não sei lhe falar sobre. Talvez sua humanidade não lhe sirva de nada, talvez os fenômenos sejam outros, e as subjetividades ganhem novos conceitos.
   -Bem...sabendo que você nada mais é do que a representação máxima do pensamento humano contemporâneo, posso supor que talvez os pensadores que ainda virão poderão descobrir alguma coisa sobre a morte. Enquanto isso, ela continua sendo o grande mistério que sempre foi, pode ser que eu desperte em outra experiência como essa, em que outras consciências venham falar comigo, e eu descubra coisas sobre a vida assim como aqui descobri tantas coisas sobre a humanidade. Estou curioso para descobrir, que venham novos mistérios.
   E escutou o barulho agudo e constante do medidor de frequência cardíaca, ao mesmo tempo em que tudo foi se apagando a sua volta. Apagando, sem escurecer nem clarear.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sepia

O cinzeiro do lado da poltrona era como uma metonímia da atmosfera da casa. Tudo já havia se apagado, sobrando apenas cinzas do que um dia já proporcionou momentos de êxtase e prazer. Agora, só um copo ficava sobre a mesa, ninguém para brindar. Nenhum motivo para brindar. Aguardava na pia, no máximo, três ou quatro louças. Na lavanderia, também não era mais preciso separar as roupas coloridas das brancas na hora de lavar. Não se ouvia mais gritos e corres de crianças, todas cresceram, e seus pais que antes as seguravam no colo, já tinham sumidos. Ele, que antes vivia bem acompanhado e bem sucedido, que tinha vivido o ápice da evolução de sua espécie, agora entrava em extinção, sozinho. Seus únicos momentos de luz são as lembranças daquele tempo de fotografia antiga, daquele cheiro de comida caseira feita em caldeirões, do grande quintal que precisava ser lavado toda semana.
Cansado da nostalgia romântica do dia, ele se levanta da poltrona, com a xícara de café da manhã amarga e vazia. Lentamente, pelo longo corredor que dava para quartos e banheiros, ele vai até sua suíte para se trocar e se civilizar. Tudo era muito espaçoso, uma grandiosidade que perdeu o motivo, que não se justificava por si só. A cama casal estava imensa, evidenciando a sua solidão fetal na hora do sono. As paredes ainda guardavam a umidade dos armários que tinham sido tirados, como se fossem fantasmas de um tempo feliz. Depois de trocar a roupa e calçar os chinelos, ele sai para comprar pão e, quem sabe, enganar o tempo que não passava.
Do lado de fora, santinhos de vereadores e prefeitos escondiam os buracos das calçadas. A neutralidade cinza da rua era disfarçada pelas imagens coloridas e sorridentes dos cavaletes e fachadas de políticos, tudo uma ilusão, a única coisa que permanecia igual as suas lembranças. Os políticos ainda eram apenas maquiadores, igualzinho a sua época. Quantos discursos ele já tinha ouvido que prometiam mudar a situação? E ele continuava a ouvir os mesmos textos decorados, as mesmas promessas, e tudo permanecia intocável. Os folhetos com a cor alternativa também estampavam as mesmas palavras da minoria que ele votava quando era eleitor. A esquerda ainda tinha o mesmo discurso. Os jovens estudantes, análogos aos seus velhos amigos da faculdade, gritavam a mesma estratégia. Era como se a paisagem urbana zombasse na sua cara, rindo da sua velhice tão ultrapassada e ainda tão vigente.
Desviando seus passos de toda publicidade impressa, entra na padaria e pede três pãezinhos. Ele conhecia o pai do jovem padeiro que lhe atendia agora, e mais do que isso, o avô do jovem era um velho colega seu. Mas a terceira geração da padaria não era pra tanta camaradagem, apenas o cumprimentava e de vez em quando dava bom dia.
Voltou para sua casa: uma fachada ornamentada com um portãozinho de ferro enferrujado, que se abria para um jardim que implorava uma podagem. Uma tímida horizontalidade entre tantas verticalidades de empreenteiras e imobiliárias. Na sala de estar, sentou sozinho na sua nova mesinha redonda e comeu pão com bife requentado, para substituir o almoço que estava com preguiça de fazer. De frente pra janela escondida pelo matagal que virou seu jardim, ele ficava olhando o seu bairro, as pessoas que passavam eram todas diferentes, mas todas pareciam de alguma forma a antiga gente de seu tempo, talvez fossem todas filhas ou netas de seus conhecidos. Contudo a maioria delas não saberia dizer seu nome atualmente.
Era como se o seu tempo já tivesse passado e não houvesse mais nada para ele agora. Ele tinha envelhecido, era antiquado, não deveria estar ali.
Lá de dentro da sua sala, dava para ver as árvores da rua. A altura delas denunciava a idade do bairro, elas eram velhas, ultrapassadas. Suas raízes idosas quebravam o cimento da recente calçada. Elas não harmonizavam com o cenário atual. Mas ainda estavam lá, firmes, fortes, robustas, rústicas, e saudosistas. E não cairiam tão cedo. Um sinal do orgânico que resistia à monotonia monocromática.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O problema das coisas
é que elas não acontecem
É preciso acontecê-las

Não basta ter ideias
é preciso explicá-las,
esboça-las e projeta-las
pois só a teoria não me satisfaz

Conceitos subjetivos,
por que me exigem tanto tempo?
Não vivo apenas para cumpri-los
por enquanto, por favor
permaneçam em silêncio

Que gritem com toda força
quanto eu estiver pronto
Aí sim, poderei tornar visível
todo esse encanto

Mas agora não.
Agora, sinto sono
Agora, sinto cansaço
Nas sombras, com preguiça,
assim, só sabendo sonhar

Mas depois sim.
Depois, realizarei meus desejos
Depois, concretizarei meus projetos
Serei aquele que me imagino,
meu ego materializado


Depois, vou dominar as artes
conhecerei o todo pelas partes
Transformarei os males,
esses que aqui me afligem,
em um sistema de linguagem

Minha consciência será dobrada
Me verei, vendo
E finalmente saberei explicar
este fenômeno.

Conquistarei o mundo,
falarei para multidões.

Mas agora não.

Agora apenas feche a porta,
a do quarto e a do corredor
e por favor, tenha a sensibilidade
de apagar a luz.
Me dê mais 10 minutos de sono,
ainda é cedo
E me deixe viver, agora,
o meu vazio

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Só a arte é democrática

No fim de agosto, fui monitor de uma exposição da Design Week num metrô da linha verde, a Design Assinado por Todos do grupo Design OK. Eram três peças de design que o público interagia e deixava a sua assinatura. Algumas tinham canetões pendurados para as pessoas escreverem a sua mensagem, seu pensamento, seu time de futebol, ou o nome da sua gangue.
Quando cheguei lá no primeiro dia, encontrei duas estudantes de cênicas que estavam interagindo com as obras desde manhã. Conversando um pouco com elas, soube que elas cancelaram um compromisso para passar o dia interagindo com as peças. Muitas vezes, durante minha estreia, cheguei a pensar que as duas seriam as únicas que atenderiam a proposta, mas me enganei. As pessoas passavam pela exposição olhando de canto, algumas até arriscavam virar o pescoço, se questionando quem teve a ousadia de interferir sutilmente nas suas rotinas. E quando olhar não era suficiente muitas iam me perguntar qual era a intenção daquilo, ficando surpresas, algumas até desconfiadas, quando descobriam que o próprio público que "criava" o design dos objetos. As pessoas eram convidadas a sair um pouco da robótica do dia a dia. Eram tipos variados, de várias personalidades, de várias classes sociais.
Uma hora entrou no metrô uma mulher que se confundia com os anos 70, se vestia meio hippie e segurava uma folha de árvore numa mão. Ela abriu um sorriso, encantada quando se deparou com a exposição. Lembro também de um senhor de terno, desses ocupadíssimos no celular, que passou umas duas vezes pelas obras antes de se permirtir a sensibilidade para interagir. Intercambistas de vários lugares deixavam saudades e orgulhos de seus países. Crianças eram fáceis, eu não precisava convidar e nem explicar, a pureza delas já deixava claro que a obra estava lá para interação, sem dúvida foram as que mais contribuíram com o processo. Idosos também não eram difíceis de convencer. Um deles, quando percebeu que já passara um tempo consíderável desde que começara a interagir com as peças, me disse: "ai meu deus, hoje é dia de não fazer nada mesmo viu!". Outro deles, uma senhora simpática, quando eu lhe chamei atenção para o objetivo do evento, disse que estava com pressa e (visivelmente) preocupada, pois estava indo para o médico pegar resultados de um exame. Ela andou apressadamente em direção a saída, mas parou quando viu uma das obras. Depois de olhar um pouco, escreveu rapidamente uma frase. Na hora, acabei distraído por outra senhora que veio reclamar comigo, inconformada de ter acabado os espaços em branco: "onde vou escrever agora?!".
Ao fundo perto da saída, um menino de rua um pouco mais novo que eu, olhava tímido para a movimentação. Fui falar com ele e o convidei para escrever também. "Não sei escrever". Sugeri então que eu ditasse as letras da frase que ele queria. Depois que eu ditei as primeiras, escrevendo algumas no ar, ele se animou e as outras saíram mais fáceis. Satisfeito, leu ele próprio a sua mensagem: "paz justiça e liberdade".
Aquela velhinha, que agora já tinha voltado do médico, veio falar comigo: "Oi! Lembra de mim? Já fui no médico e ele disse que tá tudo certo! Me preocupei a toa". Ela se voltou para a obra, e embaixo da primeira mensagem, rabiscou pela segunda vez. Me mostrou as duas. Na primeira, com uma letra de quem não estava acostumada a escrever (mas que não se intimidou), ela expressou a sua preocupação: "Tudo vai dar certo, confie". Na segunda ela triunfou, refletindo a vitória: "Dr Everton disse que tudo deu certo".
O fato das obras estarem espalhadas por várias estações do metrô, conferia uma poética que atingia os propósitos da intervenção: design assinado por todos. Foi feita para um público global, pessoas que já tinham contato com a arte, e que de alguma forma já se expressavam através de uma linguagem, e outras que nunca tiveram essa cultura ou oportunidade. Afinal, são todos humanos, todos tinham a necessidade de se expressar, de encontrar o seu cantinho de respiro no meio desse cotidiano sistemático urbano. Com certeza foi um trabalho que nunca esquecerei.

sábado, 1 de setembro de 2012

Mulheres, mulheres, mulheres...


        Sentado no banco em frente a faculdade, embaixo da lua e do céu sem estrelas, ele segurava seu sketchbook aberto procurando inspiração nas figuras femininas. Elas surgiam do banheiro do primeiro andar e desciam as escadas em direção ao fim de semana, que as esperava do outro lado da rua. Era engraçado reparar no fato de que algumas mulheres passavam horas se arrumando no banheiro, outras iam só para conferir o que já estava produzido, e outras iam só para ver o que sempre esteve naturalmente pronto. Também havia aquelas que saíam da sala de aula e iam direto para a festa, metidas ou desleixadas demais, não precisavam de um espelho.
        A cada dez minutos mais ou menos alguma aparecia. Uma de cabelos longos e tingidos de loiro descia a escada, seu salto alto traduzia o som ritmado dos degraus. Carregava uma bolsa roxa que chamava mais atenção do que todo seu corpo. Péssima escolha. Sua blusa pesada vermelha vibrava com o azul da calça jeans colada. E o batom, propositalmente mais vermelho que a blusa, escondia o volume dos seus lábios. Ela acabou de descer a escada e parou na porta do prédio, o que vale mais um breve momento de preciosa observação para o desenhista. Tinha um rosto muito bonito mas completamente chapado pela maquiagem, uma pena. Buscava nas roupas e nas tintas a beleza que já era sua. Colocou a mão na bolsa brilhante e puxou um espelhinho para retoques finais. Atravessou a rua, e saiu de cena.
        Ele voltou a olhar para escada, esperando a próxima inspiração. Dessa vez saía do banheiro uma figura pequena. A medida que descia silenciosamente a escada, seu rosto ia se iluminando pelo poste externo do prédio. Magrinha, sua pele branca constratava com o cabelo liso e preto, não tinha quadril e seus peitos eram pequenos. Aparentava ser muito frágil e sensível, ao mesmo tempo que sua beleza transmitia uma força mística ambiciosa. Conseguia se vestir de forma que atendesse os padrões clássicos contemporâneos sem perder o estilo próprio. Seus ombros pontudos de fora e seu pescoço escondido pelo cachecol elegante direcionavam os olhares para a sua face. Vestia cores leves. Quando ela terminou de descer a escada e chegou na saída, o observador sentado do lado de fora concluiu que era impossível olhar para o seu rosto sem focar nos seus lábios rosados, que de tão carnudos podiam ser inscritos num quadrado. Pareciam estar constantemente com formato de beijo. A composição de todo o seu "eu" levava o conceito de feminilidade ao extremo. Ela sai do prédio, levanta seu rosto exageradamente meigo, fecha seus olhos para respirar o ar das árvores ao redor, e teatralmente sai de cena.
        Descia agora uma figura estranha, dessas que se tem que olhar por um instante para descobrir se é um homem ou uma mulher. Seu cabelo bagunçado castanho neutro, curto por ser raspado nas laterais, dizia que se tratava de um garoto. Mas seu quadril largo e suas coxas grossas denunciavam definitivamente uma mulher. Era interessante reparar como ela descia a escada de uma forma estática, mantinha-se reta e firme, indo duramente em direção à porta como um robô. Usava algo azul desbotado parecido com um terno, cobrindo uma camiseta xadrez em tons mortos de roxo e magenta, caindo sobre uma calça skinny marrom claro. Uma harmonia de cores análogas muito bonita. Quando saiu do prédio, seu rosto clareia e denuncia sua feminilidade. Não tinha lábios, e seu nariz combinava peculiarmente com o formato triangular de seu rosto. Mas o encantamento dessa personagem estava todo guardado em seus olhos. Eles eram redondos, grandes e negros, tão negros que não se via a parte branca, como se fossem buracos para espiar a sua personalidade peculiar. Seus olhos eram uma arma perigosa a qualquer um que ousasse não enxergar a beleza dentro dessa mulher tão estranha. E sem mostrar qualquer poesia ou outras futilidades, atravessou a rua.
        Sem descer a escada, pois já estava no térreo onde ficava os ateliês, uma mulher de saia apareceu já na porta. Suas pernas escondidas se alongavam graças a saia verde (desses verdes confundidos com azul) estampada com flores de art nouveau que se arrastavam pelo chão. Seu tronco magro era protegido por uma simples blusa branca de alcinha, com um decote razoável para seus seios médios. Tinha um rosto que representava de maneira curiosa uma expressão erudita. Seus olhos eram grandes e claros, com pálpebras que cobriam metade deles, dando-lhe um ar sereno. Seu nariz parecia esculpido em mármore pela renascença, de tão marcante e perfeito que era. Seus lábios tinham um desenho que acentuava extremamente todas as curvas, dando um aspecto de dois triângulos pontudos no lábio superior, e um triângulo virado para baixo no lábio inferior. Seus rosto era simetricamente equilibrado. Seu cabelo louro escuro era ornamentado por cachos volumosos, que pareciam ter vindos de uma igreja barroca, talhados em madeira banhada a bronze. Com a mesma serenidade que apareceu, foi embora misteriosamente, deixando a noite cheia de referências intelectuais.
        Descendo a escada de forma rítmica como uma dança eletrônica, acendeu uma mulher com jeito de garota. O atento observador imaginou que essa não precisou de um espelho para se achar bonita. Seu jeito de se vestir parecia um fotografia antiga: calça jeans apertada de cintura alta, uma blusa de lã aberta com botões de madeira enormes estampada com padrões antigos de avó, uma camisa escura florida, e no rosto se encaixava um óculos gigante de lentes arredondados e armação grossa. Não tinha um rosto belo, todas as energias dele eram puxadas para a frente pelo seu nariz grande e pontudo, de forma que seu lábio superior era levantado sem encostar no lábio inferior. Era dessas pessoas que se esforçavam para cerrar os lábios, sua boca sempre ficava entreaberta deixando seus dentes grandes e brancos a mostra. A natureza não lhe concedeu uma beleza estética, mas o seu estilo lhe agregava uma beleza aderente que a colocava acima de muitas mulheres que eram bonitas desde que nasceram. Com seu cabelo rosa shock refletido pela luz do luar, deixa a cena, ansiosa para acordar de ressaca no dia seguinte.
        Sem ele precisar voltar a olhar para a escada, senta ao seu lado no banco uma figura que não lhe era estranha. Ele já a tinha visto sendo paquerada por caras da engenharia, que nada conseguiram a não ser uma diminuição dos seus egos demasiados. Ela não daria a mínima bola pra ele, nem adiantava tentar. O que lhe sobrava era admirar disfarçadamente o seu perfil. Tinha uma beleza midiática e produzida. Silicone, progressiva, maquiagem, talvez até botox. Seus lábios eram tão inchados e vermelhos que chegavam a ser vulgares. Seu olhar era caído e puxado sensualmente para os lados, seguidos das sobrancelhas agressivamente pontudas. As maçãs de seu rosto eram tão redondas e brilhantes pela maquiagem que competiam com sua boca. O conjunto de toda sua composição lembrava bizarramente uma boneca inflável, despertando apetites animalescos em homens e mulheres. Ela vestia vermelho, o que deveria lhe ser proibido. O vermelho nela, acentuava ainda mais os desejos primitivos do ser humano. Todas as cores do círculo cromático lhe eram permitidas, menos o vermelho. Era uma afronta aos deuses. Um desrespeito aos bons costumes. De repente ela levanta e leva consigo toda atenção do desenhista, vai em direção a um carrão de classe alta que acabara de parar na rua, e deixa a cena muito bem acompanhada.
        Antes de descer as escadas, o som de uma voz de mulher é ouvida pelo observador. Uma voz muito alegre e simpática, que falava qualquer coisa romântica. Apareceu, falando no celular e descendo as escadas apressadamente, uma mulher muito bonita. Mesmo de longe, se percebia como suas pernas eram altas. Saíam do allstar vermelho, seguiam magras até os joelhos e depois se resolviam em coxas muito grossas, atingindo o ápice de espessura no quadril e depois afinando na cintura, compartilhando a atenção com o tronco. Suas roupas escondiam seu corpo, mas o valorizavam de maneira sutil e inteligente. Seus ombros largos eram cobertos por uma jaquetinha xadrez de mangas compridas que terminava pouco abaixo do peito, mostrando a camiseta cinza justa que abraçava seu corpo. Seu pescoço era longo como de modelo. Mas o feitiço estava totalizado em seus olhos grandes e castanho escuros, contornados por cílios longos e pretos. Eram desses olhos que eram para ser olhados por muito tempo, e mesmo assim não se saberia explicar qual elemento deles proporcionava a magia de toda a forma feminina que eles expunham. Seus cachos negros refletiam quase o mesmo brilho branco de seu olhar. Os cantos de sua boca entravam confortavelmente nas bochechas. Seus lábios dançavam em risos e bicos, mostrando e escondendo um sorriso branco, com movimentos que pareciam ensaiados. Ela passa depressa dando risadinhas, olhando para a lua, e tudo que se escuta é um satisfeito "eu te amo" antes de desligar o celular. E deixa a cena.
        Mulheres eram sempre a melhor inspiração para seus desenhos. Depois de olhar tantas delas, ele concluiu: todas eram verdadeiras obras de arte, com todos seus propósitos técnicos e conceituais. Ele não sabia dizer qual delas era perfeita, e isso não seria possível pois só a estética não bastava para a busca da perfeição. Outra vez, leu Kandinsky defender que toda obra de arte tem um elemento exterior e um interior, que só era revelado quando o espectador se dava a liberdade de observar a arte e a deixar fluir em todo o seu espírito. E o artista, por sua vez, deveria expressar toda a forma interior de uma obra, a deixando livre de qualquer preconceito formal, conseguindo ouvir a sua vibração espiritual. Portanto, para saber qual delas era perfeita, ele deveria conseguir transmitir todo o conteúdo dessas mulheres em desenhos no papel. Mas isso levaria um tempo, ele ainda nem começou a desenhar.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Inquieto

Que aflição que sinto!
Aparece do nada
e eu não sei explicar.

O que causa isso?

Será que são motivos externos?
Trabalhos de faculdade,
incertezas profissionais,
a política do Brasil,
a fome no mundo.
Problemas que não consigo resolver
que me diminuem...

Pode ser motivos internos,
tão internos que nao posso enxergar
provocam a saudade,
a paixão, e a ansiedade
Problemas que não são racionais,
que me encolhem...

Ou será que são motivos de ordem mística?
Problemas espirituais,
inerentes à minha humanidade,
que minha capacidade artística
ainda não consegue analisar.

Quatro estrofes se passaram,
e eu ainda não sei.
Portanto, acredito ser o da estrofe anterior.

Concluindo:
melhor parar por aqui
ou ficarei doente.